Vemos, todavia, a Jesus, que foi feito, por um pouco, menor que os anjos, por causa dos sofrimentos da morte, coroado de honra e de glória. É que pela graça de Deus ele provou a morte em favor de todos os homens. (Hebreus, 2: 9)
Vemos; este verbo quer dizer perceber com os olhos, com o órgão da visão. O autor lembra-nos assim, apesar dele mesmo não ter visto a Jesus, que Ele era um personagem histórico, que existiu, que não era mera invenção. Há uma mensagem espiritual da Cruz a partir de um fato que aconteceu de verdade.
Todavia, a Jesus; o personagem em questão, aquele que o autor mostra a seus leitores ser a encarnação do Messias.
Ele foi visto, se não pelo autor da carta, mesmo que alguns de seus leitores também não tenham avistado com Ele, por muitos presentes nesta época e estes podiam testemunhar.
…que foi feito, por um pouco, menor que os anjos; este trecho fala da encarnação do Cristo. Ele foi feito, por um pouco, menor que os anjos.
Os judeus leitores deste tratado não tinham a ideia sobre anjos que nós espíritas temos hoje. Os anjos eram para eles seres espirituais que pertenciam à corte de Deus, eram mensageiros Deste. Não tinham, entretanto, a oportunidade da encarnação, eram seres especiais.
Eles estavam acima do homem; nosso autor está constantemente dizendo que o Messias estava acima dos anjos, aqui ele explica a humanidade do Messias, que Ele, mesmo sendo superior aos anjos, fizera-se por um pouco de tempo, menor do que estes, isto, é encarnou-se.
É usada aqui a mesma palavra do sétimo versículo, brachus, que lá tem o sentido de "pouco" conforme no Salmo citado, expressando este assumir uma posição inferior aos anjos. Aqui o autor que era profundo conhecedor do grego, do significado de cada expressão, joga com as palavras usando-a em sentido duplo, ele se fez "um pouco" menor que os anjos, mas por um pouco de tempo; quando terminasse a encarnação ele assumiria novamente sua posição nas esferas espirituais superiores.
Este processo encarnatório de um Messias não é de fácil execução, pois trata-se de submeter um Espírito que já não pertence à raça humana, que já possui um perispírito em condições para nós inimagináveis, com uma psicologia inabordável por nossa mente, ou seja, um Construtor de Mundos, um Co-criador em Plano Maior, a um processo ajustado às leis de nosso mundo físico.
Alguns Espíritos chegam a dizer que a adaptação deste Espírito para encarnar-se demorou milênios. Não podemos confirmar tal afirmativa, mas também não temos como desmenti-la. É algo que está cima de nossa compreensão, mas ela tem a sua lógica.
Também não é objetivo deste trabalho explicar o processo encarnatório de Jesus, até mesmo porque não temos condições para tal, se isto citamos, é para lembrar a nossos leitores o quanto este Espírito de evolução para nós ainda indescritível teve de se submeter para realizar o projeto de Deus, o quanto ele teve de obedecer, de fazer-se pequeno.
Visto por este ângulo notamos que a mensagem poética da manjedoura ainda é bastante pequena e simples para nos dizer da enorme humildade deste Grande Espírito.
Ele pode, com autoridade, submeter, porque submeteu-se a Deus, ao seu plano, por amor, espontaneamente, assim exemplificando o quanto podemos e devemos fazer se estivermos ajustados ao Criador.
Diante de tal realidade, pode-se perguntar, mas será que seria mesmo necessária esta encarnação, não teria como fazer diferente?
É uma grande presunção de nossa parte fazer esta pergunta, pelo simples fato de que não cabe a nós, pobres criaturas humanas, pedir satisfação a Deus de Suas atitudes. Concluímos assim, que se fosse possível fazer de outro modo o Criador teria feito.
Mas como ele é Misericórdia, permite melhores explicações, é o que vamos tentar fazer comentando a continuidade do versículo.
…por causa dos sofrimentos da morte; esta é em parte, parte da resposta à nossa pergunta. Mas aqui é preciso analisar por dois aspectos, pois o texto é tão rico que nos permite várias abordagens.
Jesus foi coroado de honra e glória por causa do sucesso de sua missão realizada em perfeição com os Desígnios do Pai, isto não resta dúvida, e pode ser visto isto neste verso.
Entretanto, queremos ir além, justificar a encarnação por causa dos sofrimentos da morte.
Deus tem um projeto para a recomposição da raça humana que caiu no erro afastando-se assim da Unidade Divina. Trata-se de um projeto longo que vem sendo realizado minuciosamente através dos milênios de nossa evolução.
Em determinado momento, quando a humanidade atinge certo grau de amadurecimento Ele envia Seu Filho Amado para a realização mais importante de todo o projeto, ensinar aos homens que só através do amor e ajustado ao Pai esta recomposição se faria e concluiríamos o processo de volta ao Criador.
Os pedagogos de nosso mundo já concluíram que o exemplo não é um modo de educar, mas é o único eficiente. Como este processo de recomposição trata-se de um processo reeducativo, só pelo exemplo os filhos de Adão poderiam aprender e apreender os verdadeiros ensinamentos que os levariam à libertação final. Por ser sabedor de tudo isso, o Pai permite e envia à encarnação Seu Filho já Cristo.
É preciso aqui compreender que a morte de Jesus não foi só a acontecida no dia do Calvário, ela foi a própria encarnação do Espírito Puro. Ao sair de Seu Reino de Pura Espiritualidade e tomar um corpo de carne, isto para um Espírito de seu nível já é a morte, viver diante de tanta imperfeição já significa morrer. Jesus não conheceu o pecado quando da sua encarnação, mas participar da vida dos pecadores foi sua maior provação.
A morte no sentido bíblico é consequência do desvio dos Desígnios de Deus, o que as religiões denominaram pecado. Morrer, deste modo, não é deixar o mundo físico, ou seja, desencarnar, morrer é muito mais encarnar, pois deixa-se o plano de origem, que é o espiritual e vem-se para o mundo material que não é adequado ao Espírito.
Portanto, é por causa da morte e dos sofrimentos desta, que o Espírito Jesus veio até nós, se fazendo um pouco menor que os anjos, por um pouco de tempo, para nos resgatar dela, parar nos trazer a Vida em Abundância1, Vida esta que ele já adquirira através de Seu processo evolucional.
Isso não poderia ter sido feito só do Mundo Espiritual, era preciso que Ele se fizesse semelhante à humanidade e pela provação, que significa "participar em", testemunhasse ser possível a vivência do amor neste plano tão distante do ideal.
…coroado de honra e de glória. Trata-se do coroamento de um processo. Como Jesus atendeu ao chamado do Pai, veio, realizou o melhor e finalizou o processo não deixando nada por completar, ele foi coroado de honra e glória. Por quem? Quem o corou? O Pai, Deus o Coroou.
O mundo O coroou com uma coroa de espinhos, com a humilhação, com o escárnio, mas Ele mostrou-nos ter vencido o mundo, não foi para a glória efêmera que Ele veio, mas para cumprir uma missão do Pai, uma missão espiritual que o mundo não compreendeu e ainda não compreende.
Deste modo, estejamos atentos a que tipo de honra e glória estamos buscando. A do mundo, ou a de Deus? A segunda, que é a do Cristo, tem um gosto amargo de fel, mas traz-nos a paz da consciência que é a definitiva glória do Espírito como sinal de coroamento do Bem realizado; a primeira, que é a mais valorizada em nosso estado atual, traz-nos imensa satisfação, alegria e prazer. Porém lembremos, na maioria das vezes é alegria fugaz, transitória, pois alegria em função da tristeza de outros. Parafraseemos o apóstolo Paulo, "a coroa do mundo é loucura para Deus, a coroa de Deus é loucura para o mundo, mas poder para o Espírito imortal".
É que pela graça de Deus ele provou a morte em favor de todos os homens. Graça, esta palavra tem sido interpretada como significando "favor", "graciosidade", algo gratuito, como um favor divino.
No Novo Testamento, em especial nos escritos de Paulo é preciso vê-la com o sentido de "amor". O pensamento do apóstolo dos gentios de que a salvação vem pela graça e pela fé, tem sido muito mal interpretado se entendermos isto como sendo um favor de Deus pelo ato de crer. Salvação pela graça e pela fé em Paulo deve ser entendida como salvação pelo "amor e pela fidelidade", ou pelo amor e pela verdade o que na cultura hebraica tinha o mesmo sentido.
Como em João, 1: 17, em que nos é revelado que a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. Ou como em Êxodo, 34: 6, na definição que Deus dá a Moisés de si mesmo:
Deus de compaixão e de piedade, lento para cólera e cheio de amor e fidelidade (em algumas versões "verdade").
Portanto, como Kardec nos orientou em O Evangelho Segundo o Espiritismo, a graça é a força que Deus faculta ao homem de boa vontade para se expungir do mal e praticar o bem.2 Trata-se de um dom de Deus sim, mas que só se recebe através do esforço de realizar a transformação moral.
Portanto, o versículo quer dizer, que é pelo amor de Deus que o levou a testemunhá-Lo, é que ele provou, isto é, sentiu o sabor, experimentou a morte.
Como já comentamos não se trata só da morte e do sofrimento no dia da Cruz, mas da morte de todo processo encarnatório. E por que Jesus fez isso? Em favor de todos os homens, isto é, de toda humanidade. E aqui é preciso ver cristãos e não cristãos, Ele por amor veio para resgatar a todos, principalmente, e é o que Ele afirma, aqueles que estavam mais distantes de Deus pela transgressão da Lei.
E isto nos traz a seguinte lição, não devemos ver aqui o simples fato de alguém que sofre por outro, mas o exemplo do que devemos fazer como testemunho do Novo Mandamento3, que é aquele com o qual selaremos a nossa amizade ao Cristo4.
Não há outra alternativa para a nossa libertação a não ser a do amor, a de dar a própria vida em favor do semelhante, a de provar a morte pelos filhos de Deus.
1 Cf. João, 10: 10
2 (KARDEC, O Evangelho Segundo o Espiritismo. 104ª ed. 1991), Introdução.
3 Cf. João, 13: 34
4 João, 15: 14