sexta-feira, dezembro 19, 2025

Caná: a Espiritualidade do Vinho Bom - 1ª parte








¹ E, Ao terceiro dia, fizeram-se umas bodas em Caná da Galileia: e estava ali a mãe de Jesus. ² E foi também convidado Jesus e os seus discípulos para as bodas. ³ E, faltando o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Não têm vinho. ⁴ Disse-lhe Jesus: Mulher, que tenho eu contigo? ainda não é chegada a minha hora. ⁵ Sua mãe disse aos serventes: Fazei tudo quanto ele vos disser. (João 2:1-5)

No judaísmo do século I, o casamento era uma celebração comunitária de grande importância espiritual e social. Era considerado um mandamento religioso, uma forma de cumprir a vontade divina e perpetuar a linhagem do povo de Israel. A cerimônia envolvia duas etapas principais: o kiddushin (noivado formal) e o nissuin (consumação do casamento), que podiam ocorrer em momentos distintos.
A festa de casamento durava vários dias, geralmente sete, e era marcada por muita alegria, música, dança e, claro, vinho — símbolo de celebração e abundância. A família do noivo era responsável por prover tudo, e a honra da família estava em jogo: faltar vinho, por exemplo, era motivo de grande constrangimento social.
Além disso, o casamento era visto como a união de duas almas que se completam. A tradição rabínica dizia que um homem solteiro era "incompleto" até encontrar sua companheira, com quem formaria uma só alma. Esse pano de fundo torna ainda mais significativo o fato de Jesus ter escolhido justamente um casamento para realizar seu primeiro sinal.
Ao iniciar seu ministério público numa festa de casamento, Jesus não apenas valoriza a instituição familiar, mas também a eleva a um patamar espiritual. O casamento, para o Espiritismo, é uma união de almas com o propósito de crescimento mútuo, aprendizado e evolução moral. Ao estar presente nas Bodas de Caná, Jesus demonstra que o lar e a convivência familiar são campos sagrados de trabalho espiritual.
Além disso, o fato de seu primeiro "sinal" ocorrer num ambiente de alegria e comunhão mostra que o Evangelho não é apenas para os momentos de dor ou penitência, mas também para os momentos de celebração. Ele transforma a água — símbolo da rotina, do comum — em vinho, que representa a alegria, a inspiração e a renovação espiritual. É como se dissesse: "A presença do Cristo transforma o ordinário em extraordinário".
Do ponto de vista simbólico, o casamento representa a aliança entre o humano e o divino, entre a razão e o sentimento, entre a lei e o amor. E Jesus, ao se manifestar ali, sela essa união com sua presença amorosa.
A hipótese de que algum dos noivos pudesse ter algum grau de parentesco com a família de Jesus tem sido considerada por diversos estudiosos e intérpretes ao longo dos séculos. O texto bíblico, contudo, não declara explicitamente que Jesus ou Maria fossem parentes dos noivos. Ainda assim, há elementos que sustentam essa possibilidade.
Um deles é a presença de Maria na celebração antes mesmo da chegada de Jesus e seus discípulos — o que pode indicar uma relação mais estreita com os anfitriões, seja como parente, seja como alguém com responsabilidades na organização do evento. Além disso, o fato de ela se sentir à vontade para agir diante da falta de vinho revela certa intimidade com os noivos ou com sua família.
Vale lembrar que, em vilarejos pequenos como Caná, era comum que todos os moradores se conhecessem, e as festas de casamento envolviam grande parte da comunidade. Dessa forma, mesmo sem vínculos familiares diretos, a presença de Maria e Jesus na ocasião poderia ser perfeitamente natural.
¹ E, Ao terceiro dia, fizeram-se umas bodas em Caná da Galileia: e estava ali a mãe de Jesus.
Literalmente, o "terceiro dia" pode ser entendido como uma referência cronológica, seguindo a sequência dos acontecimentos anteriores no Evangelho de João, como o chamado dos primeiros discípulos. Mas os evangelistas, especialmente João, raramente usam números de forma casual. O "terceiro dia" evoca imediatamente a ideia da ressurreição, da manifestação da glória divina, afinal, foi ao terceiro dia que Jesus ressuscitou, revelando a vitória do espírito sobre a matéria.
À luz do Espiritismo, esse detalhe pode ser interpretado como um prenúncio da transformação interior que o Cristo propõe. O "terceiro dia" marca o momento em que a presença do Cristo começa a operar sinais visíveis de renovação,  não apenas no vinho da festa, mas na consciência humana. É o início da revelação espiritual que culminará na ressurreição simbólica de cada um de nós, quando despertamos para as verdades eternas.
Além disso, há uma bela conexão com o episódio do Monte Sinai, onde Deus se manifesta ao povo de Israel também "ao terceiro dia" (Êxodo 19:11). João parece querer nos dizer: assim como Deus se revelou no Sinai, agora se revela novamente, mas desta vez, não com trovões e relâmpagos, e sim com vinho novo, alegria e presença amorosa.
² E foi também convidado Jesus e os seus discípulos para as bodas.
O fato de Jesus ter sido convidado para as bodas nos fala, antes de tudo, sobre liberdade e acolhimento. O Cristo não invade, não impõe sua presença: Ele entra onde é chamado. Isso ecoa o princípio do livre-arbítrio tão valorizado no Espiritismo. A presença do Cristo em nossas vidas depende da nossa disposição em convidá-lo, em abrir espaço, com sinceridade, para sua influência transformadora.
Além disso, o convite estendido também aos discípulos mostra que a espiritualidade não caminha sozinha. Aonde o Cristo vai, leva consigo a comunidade, o aprendizado, a partilha. O casamento, nesse sentido, não é apenas a união de duas pessoas, mas um símbolo da integração do ser com a verdade espiritual, com a fraternidade e com o serviço ao próximo.
E há ainda um detalhe bonito: Jesus aceita o convite. Ele valoriza os momentos humanos, participa das alegrias simples da vida. Isso nos ensina que a espiritualidade não está separada do cotidiano, ela se manifesta no lar, na festa, na mesa compartilhada.
Ter Jesus presente em nosso casamento representa muito mais do que uma bênção cerimonial. Significa convidar o Cristo para fazer parte da intimidade da vida a dois, permitindo que seus ensinamentos de amor, perdão, humildade e serviço sejam os alicerces da relação. No contexto cristão espírita, isso é essencial: o lar é uma escola de almas, e o casamento é uma oportunidade de crescimento mútuo, de resgate e de evolução espiritual.
Quando Jesus está presente, mesmo que simbolicamente, o casal se compromete com uma vivência mais elevada, onde o diálogo substitui o orgulho, o respeito supera as diferenças e o amor se torna uma construção diária. É como nas Bodas de Caná: quando o vinho da alegria parece faltar, a presença do Cristo transforma a água da rotina em vinho novo, renovando o ânimo e a esperança.
E mais: Jesus não foi à festa sozinho, levou seus discípulos. Isso nos lembra que, ao convidá-lo, também acolhemos os valores do Evangelho e a comunidade espiritual que nos apoia. O casamento, então, deixa de ser apenas uma união legal ou afetiva e se torna uma parceria espiritual, com propósito e transcendência.
³ E, faltando o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Não têm vinho.
Em festas de noivado e casamento no contexto judaico do século I — como nas Bodas de Caná — o vinho tinha um papel central, tanto prático quanto simbólico. Ele era sinal de alegria, bênção, hospitalidade e abundância. A presença do vinho indicava que a celebração estava completa, que havia generosidade e que os noivos estavam sendo honrados com tudo o que havia de melhor.
A falta de vinho, por outro lado, era mais do que um contratempo logístico, era um sinal de falha, de escassez, até mesmo de vergonha pública para os anfitriões. Num ambiente onde a honra familiar era um valor essencial, deixar faltar vinho poderia ser interpretado como despreparo ou desrespeito aos convidados.
À luz da Doutrina Espírita, esse episódio ganha contornos ainda mais profundos. O vinho representa a alegria espiritual, a inspiração, o entusiasmo da alma. Quando ele falta, é como se a vida perdesse o brilho, como se estivéssemos vivendo apenas com a "água" da rotina, sem o "vinho" da presença do Cristo. A intervenção de Jesus, então, simboliza a renovação interior: Ele transforma o ordinário em extraordinário, o vazio em plenitude.
Neste versículo, Maria se revela não apenas como uma presença atenta, mas possivelmente como alguém com papel ativo na organização da festa. Sua prontidão em perceber a falta do vinho — antes mesmo que os anfitriões ou os convidados se alarmem — sugere que ela estava envolvida nos bastidores do evento, talvez ajudando diretamente a família dos noivos. Isso explicaria sua liberdade para interceder e sua preocupação com o bem-estar da celebração.
Mas mais do que uma organizadora cuidadosa, Maria manifesta uma sensibilidade espiritual profunda. Ela percebe a necessidade antes que ela se torne um problema visível, e age com confiança, dirigindo-se a Jesus com poucas palavras, mas com plena fé. É como se encarnasse o papel de um Espírito protetor: aquele que vela silenciosamente, mas age no momento exato com sabedoria e amor.
Sua atitude nos ensina que a verdadeira caridade começa na atenção silenciosa às necessidades alheias — e que a espiritualidade se manifesta também nas pequenas ações do cotidiano, como garantir que uma festa continue sendo um espaço de alegria e comunhão.
⁴ Disse-lhe Jesus: Mulher, que tenho eu contigo? ainda não é chegada a minha hora.
Esse versículo, é um dos mais intrigantes do episódio, e quando lido com sensibilidade e à luz da Doutrina Espírita, revela camadas profundas de significado.
A expressão "Mulher, que tenho eu contigo?" pode soar ríspida em português moderno, mas no contexto cultural da época, o termo "mulher" era uma forma respeitosa de tratamento, usada inclusive por Jesus na cruz ao se referir a Maria (João 19:26). Não há ali desrespeito, mas sim um distanciamento simbólico: Jesus começa a marcar a transição entre sua vida privada e sua missão pública. Ele deixa claro que, a partir daquele momento, suas ações seguirão o tempo e a vontade do Pai, não mais os laços familiares terrenos.
A frase "ainda não é chegada a minha hora" é recorrente no Evangelho de João e sempre aponta para o momento culminante da missão de Jesus: sua paixão, morte e ressurreição. Aqui, ela indica que o "sinal" que está prestes a realizar não é apenas um milagre social, mas o início de uma revelação espiritual progressiva.
Esse diálogo pode ser visto como um marco simbólico: Maria representa a sensibilidade espiritual que percebe a necessidade humana, e Jesus, mesmo indicando que sua "hora" ainda não chegou, acolhe o pedido com amor e compaixão. É como se dissesse: "Ainda não é o momento pleno da revelação, mas já posso oferecer um sinal da abundância divina".
E é importante lembrar que Jesus jamais utilizou seus poderes em benefício próprio ou de seus familiares. Todos os seus atos foram voltados ao bem coletivo, à elevação espiritual da humanidade e à exemplificação do amor incondicional. Mesmo nesse episódio, sua ação não visa favorecer sua mãe ou amigos, mas sim revelar, por meio de um gesto simbólico, a presença transformadora do Cristo nas situações humanas. 
⁵ Sua mãe disse aos serventes: Fazei tudo quanto ele vos disser.
Aqui, Maria demonstra não apenas sua profunda comunhão espiritual com Jesus, mas também sua maturidade evolutiva. Ela compreende que a resposta de seu Filho — "ainda não é chegada a minha hora" — não é uma recusa, mas uma afirmação velada de que o momento da manifestação está próximo. Sua fé é tão plena que ela não insiste, não argumenta: apenas se volta aos serventes e os orienta com firmeza e serenidade.
Esse gesto revela sua autoridade moral e, possivelmente, sua responsabilidade prática na condução da festa. O fato de os serventes a ouvirem e obedecerem sem questionar sugere que ela exercia ali um papel de liderança, talvez como alguém da família dos noivos ou encarregada da organização do evento. Isso reforça a ideia de que Maria não era apenas uma convidada, mas alguém comprometida com o bom andamento da celebração.
Do ponto de vista simbólico, Maria representa aqui a voz da intuição elevada, da fé que antecipa a ação do Cristo. Ela é como os Espíritos benfeitores que, mesmo diante do silêncio aparente da Divindade, continuam confiando, orientando e preparando o terreno para que o bem se manifeste.
Maria não diz "façam o que eu mandar", mas "fazei tudo quanto ele vos disser". Ela não se coloca no centro, mas aponta para o Cristo. É o gesto de quem compreende seu papel de medianeira, de ponte entre a necessidade humana e a resposta divina.
Ao dizer "fazei tudo quanto ele vos disser", nos ensina a não reter para si o protagonismo da fé, mas a direcionar o olhar para o Cristo. Ela não busca glória pessoal, nem se coloca como fonte da solução, mas como canal, como ponte entre a necessidade humana e a resposta divina. Esse gesto revela sua grandeza espiritual: quanto mais elevada é a alma, mais ela compreende que sua missão é servir, não brilhar por si mesma.
Essa atitude de Maria é um modelo para todos nós. Em um mundo onde tantas vezes buscamos reconhecimento, controle ou protagonismo, ela nos mostra o caminho da verdadeira fé: confiar no Cristo, mesmo quando não compreendemos plenamente seus tempos e modos. Ela não exige explicações, não impõe condições, apenas orienta: "façam o que ele disser".
Na tradição cristã, especialmente na católica, Maria é reconhecida como Medianeira de todas as graças, expressão que não diminui a centralidade de Cristo.
A expressão católica "Medianeira de todas as graças" reconhece em Maria um papel especial na economia da salvação: não como fonte das graças, mas como canal por onde elas fluem, em virtude de sua união íntima com o Cristo. Essa mediação, como dissemos, não diminui a centralidade de Jesus, mas exalta a cooperação amorosa de Maria na obra redentora, como ensinam diversos santos e doutores da Igreja.
Curiosamente — e belamente — essa concepção encontra eco na visão espírita apresentada por Humberto de Campos no capítulo final de Boa Nova. Ali, Maria é recebida por Jesus no plano espiritual com a saudação: "Minha mãe, vem aos meus braços!" "Venho buscar-te, pois meu Pai quer que sejas no meu Reino a Rainha dos Anjos…"[1] Essa cena não apenas emociona, mas revela o reconhecimento espiritual da missão de Maria como guia, intercessora e consolo para os corações aflitos.
Embora o Espiritismo não adote dogmas marianos como a mediação universal no sentido teológico católico, ele reconhece em Maria um Espírito de altíssima elevação, cuja missão transcende a maternidade biológica e se estende como presença amorosa junto à humanidade. Kardec chega a afirmar: "Deus enviou um Espírito puro, não pertencente à raça culpada e exilada, para se encarnar sobre a Terra e nela cumprir essa augusta missão [...]" [2]
Sua atuação como "Rainha dos Céus", na linguagem simbólica de Humberto de Campos, está em perfeita sintonia com a ideia de que ela continua a servir, a inspirar e a interceder — não por imposição, mas por amor.
Essa harmonia entre tradições mostra que, quando o olhar é sincero e o coração está aberto, diferentes caminhos espirituais podem convergir na reverência àqueles que mais se aproximaram do Cristo pelo amor e pelo serviço.
 Para nós, cristãos de todas as eras, esse versículo é um lembrete poderoso: a verdadeira espiritualidade não busca holofotes, mas aponta para a luz maior. E Maria, com sua delicadeza firme, nos convida a confiar plenamente na direção do Cristo, mesmo quando a "hora" ainda não parece ter chegado.

(Continua no próximo Post)

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[1] XAVIER, Francisco Cândido; CAMPOS, Humberto de. Boa Nova. Capítulo 30. Disponível em: https://bibliadocaminho.com/ocaminho/TX/Bn/Bn30.htm.  Acesso em: 24 jun. 2025.
[2] KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos. Fevereiro de 1862. Disponível em: https://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1862.pdf. . Acesso em: 24 jun. 2025.

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